sexta-feira, 24 de junho de 2011

EM MEU SEIO...





Coração pulsa de um lado
Pulsações calmas ritmadas
Beija-flor voa lá no outro
Giros velozes sincronizados

Sonho co’ o belo jardim
Respiro as madrugadas
Suspiro as orvalhadas

Coração deseja ser colibri
Voar rápido e bem distante
Colibri anseia ser coração
Pulsar suave e profundo

Flores se abrem no meu seio
Coração e beija-flor bailam
Intimidades compartilhadas

terça-feira, 21 de junho de 2011

REFLEXÃO IV





A beleza do existir reside na força do ser humano
em enfrentar os pântanos;
Capacidade de transformar em sonhos as tempestades 
violentas que mutilam.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

A SENHORA E A CARTA





Havia passado o tempo, mas o encanto não a abandonara. Ele a esperava. Que roupa usaria para o dia de hoje. Ele era muito exigente com ela. Observava todos os detalhes. Ela tinha consciência disso; por isso cuidava meticulosamente de seu corpo marcado pelo tempo.
O pente passando no cabelo era como o rastelo puxando a terra para a plantação. Sempre trazia as recordações da colheita passada. O Espelho era seu confidente. Contemplava-o com temor, pois ele lhe dizia as desventuras de sua vida.  Amarrou o cabelo e pôs o véu. Escondera os segredos desvelados. Mas ele não ia gostar de vê-la assim escondida em si mesma. A senhora tirou o véu e foi ao cabeleireiro tinturar os cabelos. Voltaram pintados e cacheados. Não! Precisa ser ela mesma. Ele não aceitaria toda essa maquiagem de sua verdadeira imagem. Pegou novamente o pente e recobrou sua imagem primeira.
A parte mais complicada. Escolher a roupa mais adequada para o momento. Sapatos, calcinha, sutiã, saia, blusa. A cor e o estilo. Ai como é difícil, suspirava. Olhou para o relógio e desesperou-se ao ver que lhe restava pouco tempo. Azul com salto, branca com renda, vestido longo verde, em vez de saia e blusa. O batom, meu Jesus, quase esquecia. Foi novamente diante do temido espelho. Vermelho, tinha que ser vermelho. Cor do desejo, da paixão, do amor.
A senhora estava pronta para o encontro. Foi até o pequeno surdo-mudo ao lado da cama e retirou a carta. Pôs entre o sutiã e os seios. Dirigiu-se até a janela e debruçou-se sobre ela; nesse instante, o sol se despedia no horizonte. Lágrimas bateram no alpendre da janela e se precipitaram no desejo de trazer o sol de volta. A Senhora passou a mão nos lábios deixando marcas de batom no rosto. Fechou a janela; tirou a roupa; guardou a carta. Vestiu-se da solidão novamente.

sábado, 18 de junho de 2011

ANJO MAL - 3 Cap

3 CAPITULO


ENCONTRO COM A FACE DE DEUS







O jovem manteve-se em silêncio algum tempo. Tentava compreender seu itinerário de seguidor e do porquê Deus não o ter orientado para que não se desviasse de sua Palavra. Certa indignação dele mesmo e de Deus surgiu no coração e lhe trazia angústia mortal. Esse tempo todo seguiu a um Deus que não era Deus. A Religião é um engano das massas. Um fanatismo coletivo de autodestruição e criação, em outro plano, de nós mesmos deusificados. Pensava o jovem em pedaços.
- seus pensamentos seguem a lógica de seus sentimentos. Você tem razão: Deus não quis saber você e tão pouco você foi seduzido por ele. Nenhum tem culpa. Portanto, não há necessidade de reconciliação. – o demônio comentou, enquanto degustava o café.
- Ao menos me dê um pouco de privacidade em meus pensamentos! – escancarou o jovem.
- Perdão, é esse meu costume que não me abandona.  Vou me centrar no cafezinho.
Depois de mais algum tempo em silêncio, o jovem ergueu a cabeça com valentia e firmeza e confessou:
- realmente, o Deus que eu buscava não era o Deus pregado por Jesus. Porém, insistir em alguém como eu que lhe invocou sobre o pretexto de lhe adorar, simplesmente para o egoísmo justificar e esconder, esse alguém só poderia ser verdadeiramente Deus. Se esse Deus nesse tempo todo, em mim se fez espera, posso nele também esperar misericórdia.
- creio que estou quase terminando meu café para poder afastar-me de seu coração. – dessa vez foi o diabo que tentou interromper a reflexão do jovem.
- se você quiser, pode ficar mais tempo, pois até será melhor, pois assim, ao contemplar suas artimanhas poderei ainda mais me ausentar delas. E se de novo meu coração desavisado te chamar, não hesite ou se envergonhe em logo se apresentar. Café pronto vou lhe ofertar. Observando seu cínico olhar compreenderei que mais uma vez, do verdadeiro Deus, quisestes me afastar com seus argumentos ordenados e apresentados com astúcia...ah, sim, leva contigo a cruz do fracassado que a muitos humanos tem revelado e levantado. Ela será sua fraqueza, não minto, mas será a única a dizer-te quem és e ajudará a reconhecer que somente em Deus, absurdo do amor, a realidade humana transcende sua vil crueza. Obrigado por me ensinar que Deus é sempre presença e força, mesmo na minha ausência!
Terminava de falar e pressentiu que o diabo já não estava mais por lá. Não é que fora vencido, mas só tinha se ido para em outra oportunidade retornar, pois o demônio era consciente de que em luzes, ainda mais na sociedade do brilho, a pessoa humana gostava de esquadrilhar-se e fugir de sua verdadeira realidade. Não seria mais a frugal sexualidade centrada na genitalidade, distorções psicológicas, a preocupação com a imagem religiosa de um falso Deus, ou pequenas desavenças fúteis que gastaria suas energias em evitar o pecado, fruto da ausência de Deus. Por fim, concluiu que se tinha um inimigo a quem combater este seria sua própria imagem refletida no espelho. Fechou os olhos e agradeceu o sentimento de confiança que sentia no coração.
O rapaz estava aliviado e disposto a reconstruir sua existência do ponto em que estava, ou melhor, daquele encontro com o demônio, com seu demônio, com ele mesmo. Abriu a janela para deixar correr mais ar puro. Pousou no peitoril uma mariposa lutando por novas formas com o gérmen de seu existir incorruptível e único. O menino que tocou as pupilas do demônio tomou em sua mão uma caneta e se debruçou sobre um pequeno livro, fez algumas anotações e se foi ao mundo corrompido ser, de Deus, fragrância.


FIM


“É próprio do espírito mau, que se disfarça em anjo de luz, introduzir-se em conformidade com a alma devota e sair com proveito dele, isto é, suscitar pensamentos bons e santos, conforme com a tal alma justa, e depois procurar pouco a pouco atingir seus objetivos, atraindo a alma a seus enganos secretos e perversas intenções”

Santo Inácio de Loyola

quinta-feira, 16 de junho de 2011

ANJO MAL - 2 cap.

2 CAPÍTULO

CONFRONTO






O rapaz sabendo que não iria pôr para correr ou mesmo enganar o demônio, decidiu enfrenta-lo, confiado nas palavras que certa vez ouvira nas leituras da missa de Pentecostes pronunciadas por Jesus ao ascender aos céus, segundo a tradição de seus apóstolos: “eu estarei com vocês até os fins dos tempos”. Repetia para si mesmo aquela sentença como mantra que, de certa forma, encorajava bastante. Cheio de ânimo, pegou sua cadeira, sob o olhar inquisidor do demônio, e pôs frente a frente a ele, testa a testa, conforme o dito popular. Deu o café ao demônio e logo depois tomou o seu que havia preparado em sua xícara negra com listas verdes.

- bom menino! Não é todo dia que encontro pessoas tão valentes, que me descobrindo por dentro deste corpo e espírito reluzentes, se sentam frente a frente, crendo nas palavras de um fracassado na cruz, levantado pela mídia de pescadores nus. – tomou um gole de café – Parabéns! O café está uma delicia.

- de nada! O meu Deus, que em Cristo se encarnou e entre nós habita para todo o sempre, ensinou-me a oferecer o melhor de mim a qualquer um, pobres e os que ostentam riqueza, os violentos e os de paz, anjos e demônios.

O diabo disparou a bater palmas com o olhar embebido de ironia.

- parabéns novamente! Suas palavras me comoveram a ponto de desejar o batismo nas águas do Mar Morto ou mesmo nos córregos d’agua que ainda subsistem nos sertões do nordeste brasileiro.

- deixe de ironias e vamos ao que interessa, ou melhor, que possamos nos deter no motivo de sua vinda em que você descaradamente afirma que meu coração o há convidado tão presunçosamente à minha presença. – Alfinetou o rapaz, meio ferido pela ironia do diabo.

- concordo. Só um momento que meu café esfria. – pôs o dedo no líquido e novamente o vapor quente se elevava da xícara. – deseja que esquente o café de sua formosa xícara?

- não! Obrigado por sua demoníaca gentileza! Vou fazer minha pergunta: Porque afirma que o Deus que evoco é o Deus de meus interesses e blá, blá, blá?

- bela pergunta! Na verdade, eu que questiono o porquê de não aceitar que o Deus que adora é o Deus de seus interesses?

- eu sou consciente de minha fé e de meu Deus. Procuro encontrar o que é da Santíssima Vontade dele. Medito as Escrituras Sagradas e tento imitar o que elas me inspiram. Respeito o ser humano, amo os pobres que me ajudam a reconhecer o rosto do ressuscitado dentre os mortos. Sou devoto fiel do amor como primazia de toda ação humana. Em meus pensamentos e atos esforço-me para direcioná-los ao que me pede o Projeto do Reino que quer implantar o Senhor Jesus. Por isso tudo, ainda que desconfie meu intimo, eu creio que sigo a direção de estar adorando e servindo o verdadeiro Deus, que nos enviou, transbordado de amor, o seu Filho, Jesus Cristo, o messias esperado, nosso Senhor e Salvador. – o jovem finalizou confiante como se tivesse respondido convincentemente ao demônio.

- diga-me em que livros ou site, ou terá sido no Google, que você buscou tão belas palavras? Desconfio que tenham sido brotadas do seu terno e confiante coração adorador de Deus. Deixemos de falácias e nos preocupemos com a real situação do que tem sido sua inóspita e hipócrita existência. Confesso que em seu coração raras vezes encontrei o que é da Santíssima Vontade daquele que é para todo o sempre. Por isso mesmo, com freqüência me encontro em suas boas ações. Sem ironia: sinto-me em casa perto de você e...

- todas as palavras brotam de meu intimo e de meu amor pelo Senhor. Não queira me ganhar com sua retórica. – interrompeu o rapaz.

- será que posso continuar minha partilha sem ser interrompido?! – desabafou o demônio.

- Vá em frente, ser de perfeição inigualável! – falou o rapaz caçoando dele.

- Obrigado pelo elogio! Continuando: nas Escrituras só vejo você tentando pegar o que alivia seu medo ou justifica sua máscara. Morrer pelo crucificado hoje em dia é piada, pois sempre está a sobrepor sua opinião e querer próprio, seu modo de ser, enfim, seus interesses, matando a muitos que lhe cercam. Respeitar o ser humano você o faz por pena ou covardia. Se o humano não lhe serve por pobreza, seve por soberba. Gosto de seu respeito passivo. Amar os pobres é pura demagogia, quando eles te louvam ou mesmo quando seu status de riqueza e poder é sobre eles influência, dialética de proximidade e distância. Admiro sua tentativa fracassada de cumprir mandamentos, mas, sejamos sinceros, sua cercania ao homem da cruz é para não deixar seu coração, infartado pela sociedade de consumo, perecer ao relento. E esse seu discurso da primazia do amor, seria um ótimo titulo de livro como analgésico das consciências feridas pelo progresso irreversível da destruição do que vocês chamam raça humana.

- Deus é amor! O amor tudo vence, transforma, reconstrói; e por isso te destrói! – atiçou o rapaz ao diabo.

- pobrezinho de meu menino! Eu feri seu coração com minhas palavras sinceras, foi?! Vou tentar não ser tão vil em minha exposição de você mesmo. O amor, meu caro, virou utopia de pará-choque de caminhão:        “ SÓ O AMOR LIBERTA”. O desejo nos dias de hoje é apenas iguaria de consumo, o slogan da liberdade. O amor é sexo que mora no olhar e goza nas entranhas de uma paixão instintiva. Não pense que o amor esteja com essa bola toda. Essa tal primazia é tão somente luta de classes. Ninguém quer morrer por amor, antídoto das massas desenganadas. Esse homem, essa mulher, repetem muitos ventrículos vazios, tem muito amor. Vocês humanos são tão medíocres que acreditam que o amor é prosperidade, felicidade exterior, paz externa, ter seu canto, privacidade. O amor, menino guru, é gozo e vaidade. Aliás, sou apaixonado pela definição que se forjou nessa sociedade pela qual escorrega sua existência, ao longo do tempo, da palavra amor e que, por sua vez, não se faz propaganda de massa dessa descoberta antropológica: “o amor é o mais alto nível do individualismo contemporâneo.” Esse amor que leva à passividade e ao comodismo das rezas e dos sacramentos; do louvor e da adoração de si mesmo em nome de Deus. Esse amor, que vocês usam cotidianamente, é meu selo imprimido em seus corações; são minhas trevas em fachos fascinantes de luz. Isso sem entrar na dimensão ética que temos até uma consigna que concorre a titulo jargão universal: “cada um no seu quadrado”. Uma premissa perfeita. Imagine você, um quadradinho entre outros quadradinhos pensando ser uma comunidade perfeita unida em todos os ângulos, entretanto, cada quadrado é sua própria Ilha, onde a única realidade visível, existente e necessária é seu Umbigo. Se vivo fosse Wittgenstein, estaria impressionado com este Imperativo Categórico.  

- não é verdade! O amor é todo liberdade! Esvazia-nos para se encher de Deus e transformar a sociedade. O amor regula as normas sociais. O amor resgata a moralidade. O amor é Deus. – o rapaz levantou a voz com convicção.

- Seu Senhor usava comparações para instruir as massas. Permita-me usar uma metáfora para instrui-lo. Veja: uma mulher e um homem vestiram-se  de justiça para ir a um baile beneficente. Quando voltaram do compromisso cristão e social, tiraram a roupa e caíram as pelancas de suas injustiças e corrupções. Menino, por esse amor, vestido dessa forma como você diz, veste-se tanto a Igreja quanto a Sociedade, cada uma com sua Verdade. No fundo, tudo não passa de vaidade, pois essa luta é pura pusilanimidade.

- porém, você não está levando em conta em seu discurso sofista o ser de Deus que suscita constantemente anunciadores do verdadeiro amor que Jesus pregou com sua própria vida entregue na cruz. – falou de modo a fazer um parêntesis no dizer do demônio.

O diabo esboçou um sorriso descrente.

- não quero ser tão duro, mas se eu dissesse a você que boa parte destes anunciadores mártires e santos foram meus fiéis seguidores até a morte?! Não é tão difícil transformar um coração, cheio de boas intenções, em uma bomba relógio de si mesmo. Não pretendo citar nomes, porém, é certo que os gurus que guiaram e tem guiado uma parcela do rebanho está dentro das especificidades de um verdadeiro anunciador de Deus. Estão no altar reverenciado, devido ao poder econômico associado a uma boa consulta cientifica de sua santidade.  Alguns não conseguiram essa proeza de subir aos altares; confesso que não foi culpa minha, pois eles mesmos decidiram assumir a perda de si mesmos em troca de um punhado de humanos desgraciados pela opressão e injustiça de outros irmãos contemporâneos. Esses eu os perdi para Deus. Descobriram a essência do seguimento: amar é perder-se aos semelhantes esquecidos.

- você me fez recordar as palavras de um apostolo. Tudo considerei como perda para ganhar a Cristo. Bem, você é tolo, porque Deus haverá de resgatar novamente seu povo eleito. A esperança foi derramada em nossos corações.

O demônio cruzou as pernas, baixou a cabeça e soluçava de tanto rir. Levantou e fez gestos cênicos para expressar seu discurso.

- O sol se abriu e cuspiu dos seus primeiros raios anjos de resgate; as estrelas se jogaram sobre a terra e se transformaram em profetas! Deus, então, de seu posto onipotente, transformou seus anjos e todas as pedras em Filhos-Messias e os enviou à todos os confins da terra; foram derrotados e tiveram o mesmo destino do Prometido às gerações desde os Hebreus: foram crucificados e pela mídia humana revestidos em bens de consumo propagandiados e etiquetados com o carimbo da fé que salva e liberta. Alguns Messias viveram por um tempo, pois eles se tornaram pico de audiência às empresas de telejornalismo conceituadas e preocupadas com o anúncio da Boa-Notícia. Quanto mais Ele aparecia, mais os patrocinadores ganhavam em nome dele.

- seu profetismo é ridículo. É prosa pra boi dormir! – desacreditou o rapaz.

- Menino, será que você não se dá conta de que Deus não é mais Deus por ele mesmo? Estamos na era do Deus-Consumo. Ele é aquilo que preciso e quero que seja. E quando não é, então, busco na prateleira um parecido ao que desejo ter e seguir. Esse Deus da cruz não é mais sinônimo de amor oblativo, nem de renúncia. A cruz virou slogan para magnatas dos negócios e, ao mesmo tempo, um elixir de sobrevivência para massas humanas em situação de miséria material e psicológica.

- Você, seu demônio maldito está tentando minha existência desejosa de Deus, que é único e não se vence com suas proposições de morte.

- não seja ingrato! Eu estou aqui tentando elucidar o que foi sua existência até gora e você vem com pedras na mão para me assassinar? – o diabo percebera que em outro quarto em algum lugar do planeta alguém lhe chamava. – Preciso ir. Deixe de ser tolo e engula que é em meu nome que sua vida triangula. Não exijo nada de você; aliás, permito que você exija dos demais com medida superior a que você gostaria que fosse medido. Convenhamos: Para quê transportar espíritos de uma só vez para outro lugar, quando posso administra-los aqui mesmo, onde o corpo e alma se fundem e se destroem? Não fuja mais! Seus interesses egoístas e utopia sou eu, superficialidade e profundidade de seu ser. Antes de ouvir algo de sua parte e também de partir, vou tomar um cafezinho. Eu mesmo vou preparar, não se preocupe, meu intimo amigo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

ANJO MAL - 1 cap.

1 CAPITULO: 

ENCONTRO INESPERADO





Levantou os olhos e lá estava robusto, atlético e simpático, o pai da mentira. Quanto mais o rapaz esfregava os olhos, pensando ser ilusão, mais ele se tornava nítido às suas retinas. Ignorar sua presença seria principio de loucura. Era como se deixasse a alma derreter tal qual resina. Então, tomou coragem e começou a perscrutar seu aspecto humano contemporâneo, ou mais precisamente, o ser da imagem, sem falhas corporais e de alma limpa. Se não fosse aquele contexto de combate espiritual que se deu início entre as quatros paredes daquele inóspito e solitário quarto, ninguém acreditaria que ali naquele humanóide perfeito do século XXI e adjacências, estaria imprimido, de corpo e alma, o demônio, belzebu, diabo, encosto, coisa ruim, o maldito e demais adjetivos reinantes na tradição popular.
Assombrado, o rapaz procurou o crucifixo no intuito de afugentá-lo, porém não o encontrava. Nem mesmo o rosário da Virgem Maria. O demônio, então, dirigiu-lhe a palavra:
- jovem, perdeu seu Deus?  é esta cruz que você busca?
- em nome do Senhor Jesus e da Santa Imaculada Virgem Maria, vai embora! – gritou o rapaz, levantando a mão com firmeza.
- tão cedo?! Lamento comunicar que não posso! Seria ignorar tão bela batalha a que me provocam suas orações.
- pois, então, deixarei de rezar para que sumas de imediato deste recinto.
- ainda assim, seria loucura deixar-me ludibriar por suas palavras.
- já que entrou sem minha permissão, o que você quer de mim?
- opa! Não me ofenda com suas palavras ao me chamar de intruso, pois eu vim ao ser chamado por seu nobre coração. – o demônio mantinha uma calma de causar inveja a qualquer mortal.
- mentiroso! Meu coração só aspirava e clamava por Deus.
- é verdade, você tem razão. Seu coração respira o Deus de seus interesses, protótipo de seu egoísmo, cada dia mais fácil de manipular, tendo em vista que você sempre pensa ser todo dele nas suas míseras atividades celestiais. Diga-me, menino de fé, se há lugar mais perfeito para esconder a mais vil crueza humana, do que as sombras do Todo Poderoso?! Em nome dele você justifica seus bens, ganância de ter mais sem escrúpulos em relação aos que não tem nada. Com Ele, o manancial, você ama quem é fiel e condena o infiel. Esse Deus virou casaco em corpos de muitos humanos medrosos, pusilânimes, sepulcros caiados; casaco feito do mais genuíno egoísmo. Você, meu caro jovem, busca a si mesmo sem nunca saber quem é de verdade, porque tudo isso de meu Deus é, na verdade, uma forma de esconder-se. Você é astuto!
As palavras do demônio deixaram o rapaz inquieto e desconcertado, pois começou a desconfiar, em seu intimo, que a argumentação do diabo poderia ter uma fundamentação lógica e racional acerca do que tinha sido até agora o percurso de sua jornada existencial. O demônio, que sempre se aproveita dos reflexos do coração, fez uma intervenção imediatamente:
- que tal iniciar esse nosso encontro tão deslumbrante com essa sua desconfiança que paira em seu ego existencial tal como pairava o Espírito de Deus sobre a água fluvial?
- que desconfiança? – o rapaz tentou enrolar o diabo.
- não me faça de tolo! – pontuou o demônio.
- você lê pensamentos? – disse, curioso e com ironia, o jovem.
- pensamentos, poesias, Best-sellers, diários e, até mesmo, a Bíblia, testamento de seu Deus.
Atordoado, o rapaz alcançou a garrafa térmica e preparou um cafezinho para si. Desejava ganhar tempo para organizar as idéias a fim de tentar defender-se das artimanhas do demônio. O diabo aproveitou sua disponibilidade e bom gosto:
- o meu café com pouco açúcar, por favor, pois necessito controlar o colesterol. Melhor, eu quero sem açúcar. Ah, e não se preocupe em ganhar tempo comigo, pois darei o tempo suficiente para que você tenha ordenada sua razão. Fique à vontade, pois tenho parte na ação e controle do tempo.
Era real, estava ali; não havia como negar sua presença e existência. A imagem de demônio que havia construído era um ser insuportável de se relacionar ou aproximar-se. Entretanto, ele aparentava simpatia, apesar de sua ironia. Talvez, ele devesse se levantar e sair como se não tivesse acontecido nada. Porém, se sua vida realmente era o que o demônio afirmava ser, saindo dali não poderia resolver isso a limpo. O diabo continuaria a ser o seu Senhor, de forma discreta e proveitosa para ele mesmo. O rapaz pensava em atitudes simples como a forma de olhar as pessoas, o carinho interessado, a caridade egocêntrica, o amor maquiado. Veio em sua mente uma leve reflexão sobre o ser ali na sua presença. As pessoas pregavam sua existência como o ser visível, destruidor de vidas, arruinador de felicidades, enfim, quando tudo está mal é porque o demônio tem as rédeas da carruagem. Porém, ninguém quase não levava a sério quando tudo parece está bem, desconfiar de que este bem é as trevas em forma de luz. Bom exemplo disso era o momento presente, pois ele mesmo se sentia feliz e realizado em sua busca de Deus e, no entanto, era sem consistência e enganosa. “Transformar o negativo e o medo em possibilidade de ser melhor; debilidades são setas a nos indicar nossos pontos de crescimento e plenitude”. Ouvira alguém proclamar e guardara para si estas palavras. Se nada é por acaso e tudo tem um porquê, precisava confrontar este trecho do caminho, mais precisamente, do seu andar.