sexta-feira, 29 de abril de 2011

FLUIR O ESPÍRITO II



Não estava muito alegre com minha alma. Peguei a mochila e fui buscar o Senhor. Precisava dizer a raiva, mais que isso, necessitava partilhar a indignação contra os desvarios de meu ser que parecia não ser grato por tanto amor de sua parte. Havia no meu coração dificuldades de amar e perdoar de modo sincero, sem máscaras ou mentiras de meu ego. Sentia que tinha uma grande disposição e desejo profundo de caminhar na direção sempre constante do amor e do perdão, dons que o Senhor Jesus compartilhou com a humanidade. Cheguei ao local onde marquei com o Senhor para a conversa pronto para desabafar e descarregar os descompassos de minha existência que remava contra a maré de seu amor.
Ele me viu de longe. Esperou. Dei um bom dia e fui logo dizendo: - Senhor, tá difícil a situa.... Ele cortou meu discurso - pois sabia a angústia de meu coração -  com um beijo e um abraço tão aconchegante que as palavras que borbulhavam dentro de mim se aninharam no véu de seu amor incondicional por nossa humanidade

quarta-feira, 27 de abril de 2011

NÉCTAR DO CORAÇÃO




Entrou bem veloz rompendo o véu da janela aberta. Lá fora o sol prenunciava a chegada na vermelhidão do céu e nas estrelas luzentes que vinham rastejando pelo capinzal. As asas pequeninas do ser trepidavam no contato com o chão e agitavam meu sono. A respiração ofegante da ave trouxe-me do sonho distante. Os olhos meio despertos pouco a pouco acolheram no coração o beija-flor.

Ele levantou voo. Tinha pousado no piso do quarto ainda gelado pela brisa da madrugada que ali se aninhou. Manteve-se no ar contemplando a sonolência de minha alma. Pedia algo. Perdi a visão do bater de suas asas, mas tinha consciência que elas sincronizavam-se velozmente. Ele insistia que me permitisse ao seu desejo. Os raios do sol já se recostavam no alpendre da janela a me espiar. Levantei e fiquei a observar o beija-flor.

A pele foi se encolhendo. Estaria sonhando? Seria uma alucinação? Estava sumindo. Só conseguia ouvir o pulsar do coração. Paulatinamente, à medida que só sentia minhas pulsações ia vendo o bater harmônico das asas do beija-flor. Quanto mais sumia, maior era a sensação forte do pulsar. Quanto mais forte pulsava, mais lento era o esvoaçar do beija-flor. O coração batia no mesmo ritmo do agitar-se das asas do beija-flor. Tão veloz e tão consciente de si.

Não precisou mais pedir. Formamos uma simbiose. Então, permiti que seu bico alcançasse as profundezas de mim para que recolhesse o néctar.  O coração abriu-se. O beija-flor silenciosamente me levou. Uma música suave e penetrante incendiou meu interior. Pela primeira vez me senti rompendo o véu de minha janela aberta.    

segunda-feira, 25 de abril de 2011

MAETERNO CUIDADO

Homenagem à minha mãe que aniversaria hoje!
Iniciando aqui uma série de publicações em vista
do dia das mães e o mês de Maria Santíssima.





       A xícara com café. Há torradas na mesa. A criança arrumada para a escola. O jornal recolhido da grama. O beijo à espera da face do esposo. Coração embebido de cuidado. Mas isso não é propriamente o ser mãe. Alguns podem ter esperado essa conclusão. Outros já teriam levantado a bandeira da rejeição contra essa descrição inicial dos afazeres de mulher. A xícara com café esfria. Tomemos.
Era pequena quando escutei minha avó falar da origem da maternidade.
- Minha neta, você não nasceu. - Disse-me bem serena.
Lembro que comecei a chorar. Eu não nasci. Era absurdo ter que acolher essa sentença de minha avó. Soluçando, quis saber o motivo de não ser nascida.
 - Vovó, eu sou fantasma?!
Perguntei, sem estar preparada para a possível resposta que pairava em minhas profundezas. Minha avó disparou a rir de mim e de si mesma. Tomou-me no colo e fez carinhos com sua mão sedosa escorrendo até embaixo na nuca por sobre meus cabelos. Naquele momento todo indício de não-existência desapareceu de meus pensamentos.
Minha avó faleceu. Nunca me contou o restante da história que havia começado. E eu que não existia, no conceito de minha avó, não me preocupei em saber minha origem. Cresci fazendo café, arrumando a mesa, lavando roupa, ganhando beijos de minha mãe, vendo os beijos roubados por meu pai e tantas outras coisas, menos sendo alguém que nem eu mesma sabia o que era esse alguém. Encontrei um colírio para meus olhos e casei. Quando minha filha nasceu, fui assaltada pela dúvida sobre o que significava exatamente aquela ação. A sentença de minha avó voltou a povoar os pensamentos.
Minha filha crescia. Nunca tive coragem de lhe contar a mesma história que ouvi de minha avó. Sabia que estava quebrando um enigma que percorreu toda a história genealógica de minha família. Sem sombra de dúvida que minha avó havia escutado de nossa bisavó que, por sua vez, havia escutado de sua descendente anterior. Certa vez, preparamos um café e fomos sentar na varanda de nossa casa; ela me disse em tom de exigência que eu nunca tinha contado historinhas quando ela era criança. Então, aproximei-me e comecei a contar várias historinhas e fábulas que eu conhecia. Um tremor percorreu a espinha quando a voz de minha avó ressoou nas entranhas de minhas narrativas. Eu não nasci. Parei ali. A xícara com café esfria. Tomemos.
Teve filhos. Sou avó de gêmeos. As rugas traziam as marcas do tempo. Meus netos cresciam lindos e formosos como botões de rosa. Minha filha gerou mais uma criança. Minha idade ultrapassava o tempo-limite a que chegaram os antepassados da árvore genealógica de minha família. Não há muito que dizer de meus dias de existência. Vivi como fantasma. Gastei muitas tardes com o roçar das mãos sobre as rugas contemplando a natureza e as crianças que brincavam no jardim. Foi o modo que encontrei de unir o passado com o presente na tentativa de perscrutar o futuro. O meu futuro.
Como sempre fazia, bem cedo da manhã, tinha saído para caminhar pelo jardim para prosear com as roseiras e namorar os beija-flores. Nesse dia, o costumeiro se abriu aos meus olhos como Mistério. Terá se escondido esse tempo todo aos meus sentidos oculares, ou só agora esse aparato repleto de vivências oculares, cúmplice de minhas rugas, tornou-se capaz de decifrar as minúcias do cotidiano? Deixei-me guiar por essas sensações e intuições que se aglomeravam dentro de mim, submergindo das profundezas de meu ser.
Ainda longe, a janela mostrava minha filha indo para um lado e para outro a preparar o café da manhã para os filhos e o esposo. Café, torradas, jornal. Falavam-me de seus afazeres. Existiam na função que exercia minha filha. Entrei. Minha neta trouxe uma xícara de café; tomou-me pelo braço e convidou para sentar na varanda. Sentei em minha cadeira de balanço preferida. Ela me entregou a xícara que esfumava o sabor do café e saiu correndo até o jardim. Trouxe uma linda rosa ainda com suas pétalas despertando – os olhares eram agraciados por essa percepção – de seu encanto. Exalei a fragrância do coração de minha neta presente nas pétalas. Sentou-se em meu colo. A memória levou-me ao colo de minha avó. Estava fora de mim e, ao mesmo tempo, nunca estive tão dentro tocando as profundezas de meu ser. A recordação trouxe a sentença: Eu não nasci. Borbulhava em meu seio uma sensação de carinho extremado por minha neta, por minha avó. Era como se estivesse num só encontro.
- Vó, a xícara com café esfria!
Alertou minha neta acordando-me dos pensamentos distantes e tão próximos. Passei a mão por sobre seus cabelos macios e sedosos.
- Vovó, como eu nasci? Perguntou em sua inocência.
Tomei a rosa nas mãos, postas em concha, e inspirei o pulsar do coração de minha neta guardada nas nuances das pétalas. Tomei coragem e disse:
- Você não nasceu!
Tentei disfarçar meu ser abalado pela força dessa expressão. Continuei deslizando as mãos por sobre sua nuca. Minhas mãos passavam confiança. Ela tinha certeza que eu solucionaria o absurdo daquele enigma. Firmou os olhinhos pequenos em meus olhares distantes. Eu procurava beija-flores. Eles eram a paixão que desinstalava meu coração. Guardavam algum Mistério. Como demorava a lhe dar uma resposta, interviu:
- Vovó, eu sou um fantasma?
Senti que seu coraçãozinho tremia interiormente. O beija-flor passou ante meus olhos. Carregou consigo meu espírito inquieto. Deu-se a conhecer. Dentro de suas minúsculas asas tive contato com todas as espécies de flores existentes. Fui levada ao bico que comunicava às flores o sentido do existir, sua origem. Deixou-me no interior de uma rosa enquanto unia-se a outra. Elas não nascem! Assim compreendi no íntimo daquela rosa. Desceram algumas lágrimas pelos sulcos das rugas distribuindo-se como braços de um rio caudaloso. Após instantes de reflexão eu disse:
- Não, meu amor, você não é um fantasma! Você esteve guardada nos sonhos do Criador. Toda noite Ele sonhava com você e ao longo das manhãs, Ele se ocupava de recordar a beleza que lhe preenchia as entranhas. Não suportando tanto êxtase cotidiano, decidiu perpetuar o sonho, compartilhando com uma de suas criaturas. Ele não chamou de frasco, mero objeto onde se guardam as fragrâncias, mas chamou de Amor.
Ela saltou de meu colo e se atirou em meus braços. Demoramos num abraço conciliador. Seus braços pequeninos envolviam os contornos de meu ser. Então, sussurrei-lhe com convicção:
- Você, minha neta, é o amor que se dá a conhecer todas as vezes que o Criador sonha...
Levantei. Fui até o jardim. Recolhi uma rosa. Ao voltar, minhas rugas foram sumindo, minha juventude retornando, a infância me abraçando ao compasso de minhas pegadas pelo jardim até o alpendre. Entreguei a rosa à minha neta. Ela inspirou o sonho de Deus guardado. Entendeu que nunca nasceu. Compreendeu o amor com o qual Deus nunca parara de sonhar. Disparamos a rir uma da outra e de nós mesmas. Eu, com meus olhinhos pequenos; ela, com suas rugas banhadas por águas cristalinas.    

sábado, 23 de abril de 2011

O HOMEM DA CRUZ





Fazia frio. A madrugada daquele sábado tinha avançado vagarosamente. Estava sentado na pedra de onde pastoreava as ovelhas que se alimentavam na colina abaixo. Uma árvore frondosa erguia-se ao lado da pedra e as estrelas se esquivavam entre as folhagens com seu ar reluzente e fascinante. O pastor mantinha-se vigilante, enquanto degustava seu café.
Percebeu que ao longe alguém se aproximava. Não podia ser ladrão, pois se fosse não ficaria tão à vista. Deve ser algum peregrino ou outro pastor. Pensava. O homem aproximou-se, fez saudação e pediu para sentar-se junto à pedra. Assentiu com a cabeça. O pastor perguntou de onde vinha. Ele respondeu que vinha de outra pedra maior que aquela que eles estavam sentados. Sorriram. Entendeu que era outro pastor.
O homem que veio de longe perguntou se ele soube da turbulência ocorrida na cidade. Ele respondeu que não, pois passara o dia pelo campo cuidando das ovelhas. Para não dizer que não sabia de nada, ele ouviu falar dum certo homem, impostor, que se dizia Deus. Só um bom pastor não abandona suas ovelhas e permanece em vigia ao longo da noite para que se sintam seguras como aquelas que eu vejo lá embaixo, tranqüilas, pastando. Confiam piamente nos olhares atentos de seu pastor. Disse convincente o homem. O pastor escutou atentamente as palavras do estranho.
Ficaram em silêncio contemplando as estrelas que escorregaram pelas frestas das copas da árvore e caíram em seu colo. O pastor estava refletindo as palavras do homem e rompeu o silêncio. O que fazia na outra pedra de onde vens? - quis saber o pastor, pois se falou tão convincente do cuidado, porque as teria deixado sozinhas. O homem permaneceu outro tempo em silêncio, contemplando e refletindo as palavras do pastor. Sabia que a pergunta tinha sido profunda. Mas tinha plena confiança que chegara á plenitude de seu cuidado para com o rebanho que lhe fora confiado.
Uma estrela candente rompeu o céu. O pastor ofereceu café ao homem. Agradeceu e aceitou, ainda que já estivesse tomado na casa de sua mãe antes de vir ao seu encontro. Ainda não me disse seu nome, disse curioso o pastor. O homem fez novo silêncio. Eu me chamo Jesus de Nazaré. Há três dias fui pregado numa cruz ao lado de outros dois ladrões. Vim ao mundo para dar testemunho do amor, trazer o verdadeiro caminho para se alcançar a Salvação. Quando falei que vim de outra pedra, referia-me à pedra do sepulcro. – o temor apoderou-se do pastor ao ver o corpo iluminado do homem, pois imaginava que era um fantasma.
O homem o acalmou. Disse que não tivesse medo, pois ele não era um fantasma. Era o homem que foi crucificado na cruz e tinha ressuscitado dentre os mortos para a Glória de Deus. Todo aquele que cresse nele toda perturbação o abandonaria e a paz reinaria no coração. Enfim, quem nele colocar a confiança a Salvação alcançaria. Jesus mostrou-lhe as mãos com os cravos e o lado aberto pela lança.
O pastor, cheio do Espírito Santo, que lhe  revelou a Glória de Jesus, tomou seu cajado e o pôs nas mãos de Jesus pedindo que este o abençoasse e fizesse dele um seguimento do homem da cruz, ressuscitado dentre os mortos para a Glória de Deus e para o alcance da Salvação de todo aquele que cresse. Após abençoá-lo, Jesus sumiu de sua vista, o homem, ainda pela madrugada, saiu a anunciar entre os seus a Ressurreição do Homem da Cruz, Jesus de Nazaré.

GESTO PASCAL




Há uma enorme Pedra nos olhares
Lá dentro só opressão e injustiça
Teias que enferrujam o coração.

Os poços jorrantes do quintal,
O maná abundante da mesa
São instrumentos de morte.

É preciso retirar a Pedra que cega,
Pois ela esconde a morte do irmão
Embalsama o olhar de Egoísmo.

Páscoa é convite à interiorização
Pulsar do coração no pulso irmão
Tornar-se um instrumento de vida.

Rompa a Pedra que encarcera o olhar
Do Mistério da Cruz a vida florescerá
Será, então, a vitória, o Gesto Pascal.