domingo, 17 de abril de 2011

PEREGRINAÇÃO - X capitulo de ASAS DE DEUS

X CAPÍTULO 





Homero foi acordado às 06:00 com uma música de Rosa de Sharon, Anjos das Ruas. Sabia que o anjo estava ali. Enquanto fazia a higiene matinal escutava a letra da música. Foi para a cozinha preparar um café e a música sempre repetindo. Mesmo se não quisesse ela repetiria. Sentado ali na mesa foi degustando aquela sopa de semibreves, mínima, colcheias, fusas e semifusas. Teve uma idéia. Pegou o bilhetinho de Araújo e escreveu no verso a letra da música para recordar sempre na viagem:


Andando pelas ruas
Eu vejo algo mais do que arranha-céus
É a fome e a miséria
Dos verdadeiros filhos de Deus
Vejo almas presas chorando em meio a dor
Dor de espírito clamando por amor
Anjos das ruas
Anjos que não podem voar
Pra fugir do abandono
E um futuro poder encontrar
Anjos das ruas
Anjos que não podem sonhar
Pois a calçada é um berço
Onde não sabem se vão acordar
Às vezes se esquecem que são seres humanos
Com um coração sedento pra amar
Vendendo seus corpos por poucos trocados
Sem medo da morte o relento é seu lar
Choros, rangidos, almas pra salvar

- Vamos!? - chamou Miguel,  que acompanharia Homero até São Paulo.
- Posso tomar uma última xícara de café? - falou quase suplicando ao anjo.
- Claro! Mas se apresse. Marcamos às 08:00, lembra?!
- Sim. Não se preocupe, vai ser rapidinho. Posso levar minha garrafinha com o restante do café?
- Não! Recorde-se do que falamos: Nada, nada!
- Você é marcação cerrada, heim?
- Sou. Vamos!
Chegaram às 08:00 em ponto. O anjo o encaminhou para Severino, morador antigo da praça e que naquela manhã iria para a outra cidade vizinha. Homero sentou-se ao seu lado. Severino não ligou, porque ia embora mesmo. Severino puxou assunto para saber quem era o intruso.
- Você não tem cara de mendigo! Nem de órfão! Tá desempregado e quer ganhar dinheiro fácil aqui na Catedral é?
- Não senhor, longe de mim roubar o espaço de vocês.
- Então, o que você faz aqui? - o olhar do velho o inspecionou.
- Estou indo para São Paulo e vim descansar aqui junto de vocês, antes de partir.
- Cadê seus pertences?
- Não tenho. Só eu e minha roupa. - Homero respondeu olhando o anjo Miguel que estava na torre da Catedral, o lugar mais alto do lugar, como se estivesse vigilante. 
- Vai de carona? - O velho estava cada vez mais interessado no intruso.
- Não. Vou a pé. - Homero respondia com frieza, pois sabia que logo logo o velho o convidaria.
- Não tem medo de ir sozinho nestas estradas perigosas?
- Um pouco, mas vou arriscar.
- Se quiser pode ir comigo até próximo de São Paulo. Depois da oração, estou indo.
- Certo. Creio que será interessante a companhia de alguém mais experiente. Irei acompanhá-lo!
Assim ficaram. Logo depois de terminada a oração, o senhor se dirigiu para seu lugarzinho e recebeu algumas moedas. Voltou para a praça, tomou sob os ombros sua sacola e seu manto e acenou para Homero que se aproximou.
- Onde está sua sacola? - ainda insistiu.
- Não tenho!
- Nem um manto para cobrir-se?
- Não!
- Você é louco! Vamos! - Severino saiu com sua sacola nos ombros e a bengala.
Antes de saírem, Severino deu duas moedas para Homero caso precisasse comprar pão. Andavam pela beirada da BR na contramão. Severino disse que era a primeira lição que não poderia esquecer. Na primeira noite, Homero dormiu na marquise de um prédio. Naquele dia não viu nem sinal do anjo Serafim. Acordou várias vezes durante a noite devido ao frio e o medo.
- Então, senhor Sem Nada, dormiu bem sua primeira noite?
- Até que não foi mal. Deu para pregar os olhos.
Durante o dia se encontraram com outros mendigos. Uns estavam embriagados, outros drogados. Mas acolheram Homero no grupo sem nenhum impedimento. Cozinharam numa lata de tinta uma sopa com vísceras trazidas por outra moradora de rua. Homero quase vomita, mas engoliu aquelas peles insossas e escaldadas. À noitinha o anjo apareceu. Severino tinha encontrado uma construção abandonada e convidou Homero para dormirem lá naquela segunda noite. O anjo estava sentado sobre uma janela destruída. Homero se aproximou.
- Porquê vocês gostam de janelas? - puxou assunto. Depois, sempre foi uma curiosidade dele que não poderia passar a oportunidade.
- A janela tem um sentido de abrir-se ao mundo exterior o nosso mundo interior. Por isso amamos estar nelas.
- Ah! Interessante colocação. - pontuou Homero.
- Estou admirado de você. Até agora tem se comportado como um deles.
- Mas eu sou um deles. Anjo com seis asas é que não sou.
- Tenho a algo a lhe dizer. - o anjo nem se moveu. Parece que anjos não entendem piadas.
- Diga. Aproveite que hoje estou sem sono.
- Lembra que eu lhe tinha prometido que não ia acontecer tragédias ao longo de seu caminhar e caso acontecesse lhe contaria?
- Sim, eu lembro.
- Pois, então, fiel à minha palavra, direi a verdade do que vai acontecer daqui a dois dias ao Severino.
- O quê? Severino vai morrer?
- Sim. Vi o anjo à espera, pronto para acompanhá-lo. Saiba que Severino está muito feliz por ter você ao lado dele. Ontem, no intimo dele agradeceu ao Criador por ter posto um anjo, você, na vida dele.
- Caramba! É tão difícil lidar com esse tipo de informação. Está certo que pedi que me contasse, mas agora me sinto perdido ao saber disso. O que eu faço?
- Nada. Continue vivendo os últimos momentos ao lado dele como se não soubesse de nada.
Nessa noite, Homero não conseguiu dormi. Severino tinha acordado cedo, conseguiu pão e até queijo. Usou as últimas moedas para comprar dois cafezinhos de uns mendigos para agradar o amigo.
- Homero, venha! Quero lhe oferecer este café desta vez. Amanhã é sua vez de ir atrás.     
Ele não conseguiu esconder as lágrimas de Deus por aquele moribundo tão feliz, mas que amanhã já não estaria aqui para que degustasse um café oferecido por Homero.
- Não chore Homero! Deve estar desejoso de chegar né? Fique tranqüilo, pois a gente está perto. Mais dois dias e chego ao meu destino e, então, você prossegue. - Severino imaginava que ele chorava por outros motivos.
- Tudo bem, Severino! Obrigado pela gentileza! Você é muito gentil!
- Engraçado, é a primeira que me chama pelo nome. - disse em tom de curiosidade e emoção.
- Brindemos com café à vida! - sugeriu Homero para esconder as lágrimas que insistem em descer.
- À vida! -Severino levantou seu copinho de café.
Ao longo do dia, Severino partilhou sua vida a Homero. Tomaram banhos no riacho sujo e contaminado da cidadezinha. Homero estava totalmente desprovido de seu orgulho e egoísmo. O tempo todo perguntava pela face de Deus que o anjo prometera que veria. Naquele dia se juntaram a um grupo de moradores de rua. Severino trouxera um papelão grosso e deu a Homero. Também mostrou a ele dez reais que ganhou de um senhor no semáforo. Homero ainda teve que se livrar de um homem que queria ter relações sexuais com ele aproveitando que todos dormiam. Foi dormir no outro lado. Pela manhã, levantou cedo. Queria surpreender a Severino. Conseguiu um pedaço de bolo. Quando voltava viu um anjo encostado no muro onde dormia Severino. Jogou o bolo no chão e correu em direção de Severino. Levantou o cobertor e viu que tinha sido esfaqueado, enquanto dormia, para ser roubado os dez reais que ganhou no semáforo. Homero ficou na cidadezinha até que fosse enterrado como pessoa e não como indigente. Nesses dias o anjo esteve o tempo todo com ele. Homero permaneceu com o manto ensanguentado de Severino. Pretendia no dia seguinte seguir viagem.
Estava na praça atrás de um banheiro público que estava uma verdadeira fedentina. Viu que três jovens estavam chegando à praça. Seriam anjos disfarçados para cuidar dele, já que ainda estava abalado com a morte de seu amigo, Severino? Não queria estragar a surpresa do anjo Serafim. Esperou que eles viessem até ele. Os jovens buscavam um lugar para passar a noite. Já tinham ido à casa dos “embaixadores de Deus”, mas lá não tinha lugar para peregrinos suspeitos e, ainda por cima, maltrapilhos. Então, restou a praça. Um deles sugeriu que fossem dormir atrás dos banheiros, pois seria mais seguro. Houve resistência de um deles pelo mau odor que exalava, porém, no fim concordaram em ficar. Espantaram-se quando viram que lá já tinha um inquilino. Homero se fazia que dormia para ver a reação dos jovens que ele acreditava serem anjos cuidadores.
- Boa noite! Boa noite! Será que podemos nos acomodar aqui também? Somos peregrinos indo para São Paulo! - um dos jovens serviu de embaixador do grupo.
Homero se fez que acordou com o barulho deles.
- Quem são vocês?
- Somos peregrinos indo pagar promessa em São Paulo! Somos de bem! Só queremos dormir esta noite aqui e amanhã partiremos.
- Tudo bem. Podem ficar. Tem aquele lugar ali, este aqui e lá do outro lado. Dá para os três se acomodarem.
- Obrigado senhor.... - um dos jovens esperava que dissesse seu nome.
- Homero Severino de Araújo. É meu nome completo.
- Legal. Você sabia que Homero foi um grande mártir que entregou sua vida pelos mais simples, que seu segundo nome, Severino significa austero e Araújo é alguém que vive de desafios, cheio de energia, de entusiasmo?!
- Não sabia! Mas me parece que ao menos meu nome herdou algo de positivo.
Homero Severino não tinha dúvidas de que eram anjos. Só os anjos sabiam essas coisas de origens dos nomes e usavam em suas conversas. Esqueceu de oferecer alimento para eles, ainda que anjos não se alimentem; porém, era questão de educação.
- Por acaso, vocês já comeram algo?
- Infelizmente, não! Estamos com o estômago reclamando deste o café.
- Tomem aqui dois pães. Molhem na água que desce e mata a fome.
Homero Severino pensou que eles negariam pelo fato de serem anjos. Mas, ao contrário, tomaram os pães e devoraram rapidinho. Homero pensou que não seriam bobos de não comer, pois assim se denunciariam. Deve ter sido um truque que usaram. Os jovens agradeceram e começaram a falar do Deus que foram encontrando no caminho durante o percurso que já fizeram. Homero, por sua vez, explicava a eles que ainda não era Deus que encontraram, senão as lágrimas de Deus e prosseguiu partilhando muitas outras vivências que lhe aconteceram. Os jovens estavam impressionados pelo encantamento das palavras que saíam de dentro de Homero. E queriam saber mais das vivências de Homero, o homem do fundo do banheiro, como se referia a ele de modo descontraído. Um deles cochichou ao ouvido do outro dizendo que Homero era um anjo que Deus pôs ali para instruí-los e cuidar. Até dos calos que tinham, Homero cuidou como se soubesse exatamente o que fazer. Terminada a partilha de sua vida, Homero mostrou-lhes o bilhete que trazia ao peito para confirmar a história que contou. Um dos jovens leu e disse:
- São belas mensagens. Está última é tão bela, magnífica. Como conseguiu escrever tão divinamente? Serão letras de anjo?  Muito lindas estas três mensagens, senhor Severino. - o jovem falou letras de anjo como que jogando uma indireta sobre a origem de Severino.
- Você disse três?
- Sim. Três! A última você caprichou. Bela citação bíblica.
- Me dê isso aqui. - Tomou de supetão da mão do rapazinho.
- Leu e releu. Não acreditava. Como podia ser? Teria sido um dos rapazes? Não tinha como, pois estava o tempo todo com eles e o bilhete não saiu do peito. Só podia ter sido o anjo. Estava impressionado. Ali era a mensagem de Deus escrita para mim ao confirmar minha súplica, pensava Homero.

Enviarei um Anjo adiante de ti
Para te guardar no caminho
E te fazer entrar no lugar
que te preparei.
(Ex 23,20)

No dia seguinte, Homero acordou e não encontrou os jovens. Na cabeça de Homero, ainda suspeitava que aqueles jovens eram anjos. Levantou-se e foi para frente da Igreja que ficava na praça ver se recolhia algumas moedas para a viagem. Quando terminou o rito, os jovens saíram de lá. Cumprimentaram Homero e seguiram viagem. Homero levantou-se e foi com eles. Logo fizeram amizade. Caminhavam como se conhecessem há muito tempo. Homero acreditava que eram anjos e os jovens, por sua vez, acreditavam também que Homero era um anjo enviado por Deus. Nesse dia, desde a madrugada, o anjo Serafim caminhava lado a lado com Homero. A fome que mais e mais pesava em seus estômagos diminuía o ritmo dos passos peregrinos. Chegaram à praça da Sé tão exaustos que se lançaram ao chão. Uma pessoa aproximou-se de Homero que se manteve em pé. Homero a contemplou e viu ser uma pessoa muito sofrida e necessitada. Um calafrio lhe subiu quando pressentiu o que a mulher ia fazer. A mulher, tomando do único pão que dispunha, estendeu a mão a Homero. Diante daquele gesto o coração de Homero apertou, pois sentiu que chegava ao fim sua peregrinação; uma multidão de anjos em espiral descia do céu e harmonicamente giravam ao seu redor; o anjo Serafim, rosto do Criador, com suas asas o cobriu; no seu intimo Deus lhe apareceu e sorriu tão convincente e puro que Homero não podia duvidar que ali Deus se mostrava e se fazia presente. Era de uma beleza extasiante. A face de Deus tal qual como o é desde a eternidade resplandecia e inundava as retinas de Homero. A face de Deus era o amor sem medidas, nem condições, o amor.
Todos os que viram o corpo caído de Homero atingido por uma bala perdida no momento em que recebia o pão da moradora de rua ficavam extasiados com o olhar de contentamento e a face tão esplendida como se fosse a face de um anjo e, ainda, outros diziam que era a face de Deus. O próprio Miguel quebrou o protocolo da hierarquia angélica e levou nos braços a alma de Homero para a eternidade, junto de Deus.

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