segunda-feira, 25 de abril de 2011

MAETERNO CUIDADO

Homenagem à minha mãe que aniversaria hoje!
Iniciando aqui uma série de publicações em vista
do dia das mães e o mês de Maria Santíssima.





       A xícara com café. Há torradas na mesa. A criança arrumada para a escola. O jornal recolhido da grama. O beijo à espera da face do esposo. Coração embebido de cuidado. Mas isso não é propriamente o ser mãe. Alguns podem ter esperado essa conclusão. Outros já teriam levantado a bandeira da rejeição contra essa descrição inicial dos afazeres de mulher. A xícara com café esfria. Tomemos.
Era pequena quando escutei minha avó falar da origem da maternidade.
- Minha neta, você não nasceu. - Disse-me bem serena.
Lembro que comecei a chorar. Eu não nasci. Era absurdo ter que acolher essa sentença de minha avó. Soluçando, quis saber o motivo de não ser nascida.
 - Vovó, eu sou fantasma?!
Perguntei, sem estar preparada para a possível resposta que pairava em minhas profundezas. Minha avó disparou a rir de mim e de si mesma. Tomou-me no colo e fez carinhos com sua mão sedosa escorrendo até embaixo na nuca por sobre meus cabelos. Naquele momento todo indício de não-existência desapareceu de meus pensamentos.
Minha avó faleceu. Nunca me contou o restante da história que havia começado. E eu que não existia, no conceito de minha avó, não me preocupei em saber minha origem. Cresci fazendo café, arrumando a mesa, lavando roupa, ganhando beijos de minha mãe, vendo os beijos roubados por meu pai e tantas outras coisas, menos sendo alguém que nem eu mesma sabia o que era esse alguém. Encontrei um colírio para meus olhos e casei. Quando minha filha nasceu, fui assaltada pela dúvida sobre o que significava exatamente aquela ação. A sentença de minha avó voltou a povoar os pensamentos.
Minha filha crescia. Nunca tive coragem de lhe contar a mesma história que ouvi de minha avó. Sabia que estava quebrando um enigma que percorreu toda a história genealógica de minha família. Sem sombra de dúvida que minha avó havia escutado de nossa bisavó que, por sua vez, havia escutado de sua descendente anterior. Certa vez, preparamos um café e fomos sentar na varanda de nossa casa; ela me disse em tom de exigência que eu nunca tinha contado historinhas quando ela era criança. Então, aproximei-me e comecei a contar várias historinhas e fábulas que eu conhecia. Um tremor percorreu a espinha quando a voz de minha avó ressoou nas entranhas de minhas narrativas. Eu não nasci. Parei ali. A xícara com café esfria. Tomemos.
Teve filhos. Sou avó de gêmeos. As rugas traziam as marcas do tempo. Meus netos cresciam lindos e formosos como botões de rosa. Minha filha gerou mais uma criança. Minha idade ultrapassava o tempo-limite a que chegaram os antepassados da árvore genealógica de minha família. Não há muito que dizer de meus dias de existência. Vivi como fantasma. Gastei muitas tardes com o roçar das mãos sobre as rugas contemplando a natureza e as crianças que brincavam no jardim. Foi o modo que encontrei de unir o passado com o presente na tentativa de perscrutar o futuro. O meu futuro.
Como sempre fazia, bem cedo da manhã, tinha saído para caminhar pelo jardim para prosear com as roseiras e namorar os beija-flores. Nesse dia, o costumeiro se abriu aos meus olhos como Mistério. Terá se escondido esse tempo todo aos meus sentidos oculares, ou só agora esse aparato repleto de vivências oculares, cúmplice de minhas rugas, tornou-se capaz de decifrar as minúcias do cotidiano? Deixei-me guiar por essas sensações e intuições que se aglomeravam dentro de mim, submergindo das profundezas de meu ser.
Ainda longe, a janela mostrava minha filha indo para um lado e para outro a preparar o café da manhã para os filhos e o esposo. Café, torradas, jornal. Falavam-me de seus afazeres. Existiam na função que exercia minha filha. Entrei. Minha neta trouxe uma xícara de café; tomou-me pelo braço e convidou para sentar na varanda. Sentei em minha cadeira de balanço preferida. Ela me entregou a xícara que esfumava o sabor do café e saiu correndo até o jardim. Trouxe uma linda rosa ainda com suas pétalas despertando – os olhares eram agraciados por essa percepção – de seu encanto. Exalei a fragrância do coração de minha neta presente nas pétalas. Sentou-se em meu colo. A memória levou-me ao colo de minha avó. Estava fora de mim e, ao mesmo tempo, nunca estive tão dentro tocando as profundezas de meu ser. A recordação trouxe a sentença: Eu não nasci. Borbulhava em meu seio uma sensação de carinho extremado por minha neta, por minha avó. Era como se estivesse num só encontro.
- Vó, a xícara com café esfria!
Alertou minha neta acordando-me dos pensamentos distantes e tão próximos. Passei a mão por sobre seus cabelos macios e sedosos.
- Vovó, como eu nasci? Perguntou em sua inocência.
Tomei a rosa nas mãos, postas em concha, e inspirei o pulsar do coração de minha neta guardada nas nuances das pétalas. Tomei coragem e disse:
- Você não nasceu!
Tentei disfarçar meu ser abalado pela força dessa expressão. Continuei deslizando as mãos por sobre sua nuca. Minhas mãos passavam confiança. Ela tinha certeza que eu solucionaria o absurdo daquele enigma. Firmou os olhinhos pequenos em meus olhares distantes. Eu procurava beija-flores. Eles eram a paixão que desinstalava meu coração. Guardavam algum Mistério. Como demorava a lhe dar uma resposta, interviu:
- Vovó, eu sou um fantasma?
Senti que seu coraçãozinho tremia interiormente. O beija-flor passou ante meus olhos. Carregou consigo meu espírito inquieto. Deu-se a conhecer. Dentro de suas minúsculas asas tive contato com todas as espécies de flores existentes. Fui levada ao bico que comunicava às flores o sentido do existir, sua origem. Deixou-me no interior de uma rosa enquanto unia-se a outra. Elas não nascem! Assim compreendi no íntimo daquela rosa. Desceram algumas lágrimas pelos sulcos das rugas distribuindo-se como braços de um rio caudaloso. Após instantes de reflexão eu disse:
- Não, meu amor, você não é um fantasma! Você esteve guardada nos sonhos do Criador. Toda noite Ele sonhava com você e ao longo das manhãs, Ele se ocupava de recordar a beleza que lhe preenchia as entranhas. Não suportando tanto êxtase cotidiano, decidiu perpetuar o sonho, compartilhando com uma de suas criaturas. Ele não chamou de frasco, mero objeto onde se guardam as fragrâncias, mas chamou de Amor.
Ela saltou de meu colo e se atirou em meus braços. Demoramos num abraço conciliador. Seus braços pequeninos envolviam os contornos de meu ser. Então, sussurrei-lhe com convicção:
- Você, minha neta, é o amor que se dá a conhecer todas as vezes que o Criador sonha...
Levantei. Fui até o jardim. Recolhi uma rosa. Ao voltar, minhas rugas foram sumindo, minha juventude retornando, a infância me abraçando ao compasso de minhas pegadas pelo jardim até o alpendre. Entreguei a rosa à minha neta. Ela inspirou o sonho de Deus guardado. Entendeu que nunca nasceu. Compreendeu o amor com o qual Deus nunca parara de sonhar. Disparamos a rir uma da outra e de nós mesmas. Eu, com meus olhinhos pequenos; ela, com suas rugas banhadas por águas cristalinas.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário