quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ROSA E A LAMA



Surgiu no meio da lama. Cresceu envolta da camada do lamaçal, terra poluída e fétida. A rosa olhou ao redor buscando o jardim do qual toda rosa ao nascer faz parte e só conseguia ver o lamaçal em que consistia sua existência. E por mais que se estendesse seu olhar só enxergava a mesma coisa.

Passava noites a fio sonhando com o jardim. Flores cantando e ninando os botões de rosa. Aglomerado de muitas espécies. Encanto e deslumbre, odores deliciosos. Porém, um dia cansou do sonho repetitivo que nunca se enraizava à sua realidade; e nesse dia, então, rendeu-se à realidade lamacenta de seu existir e não mais sonhou.

Nunca se olhou. Tão pouco sentia a textura que tinha suas folhas macias e encantadoras. O único reflexo que tinha era da lama. A tristeza reinava em suas folhas cada vez mais sem expressão. Havia como que uma força que lhe puxava para o fundo da lama. Era como se aquele pântano reivindicasse para si a existência da rosa. Pouco a pouco seu tronco foi se curvando. Perdeu a capacidade de ver longe, mesmo que nada visse além de lama, por ter a vista corrompida pela única versão que tinha das coisas.

Numa manhã cintilante em que a brisa havia passado pelo pântano pela madrugada, outra rosa nasceu tão bela quanto a outra rosa. A rosa mais antiga levantou a vista para ver sua vizinha. Não precisou de muito esforço, pois metade de seu ser já estava imerso na grande lama. A rosa, recém chegada, ainda viu algumas nuances da outra flor que lhe recordava alguma aparência do encanto que guardava em sua alma. E repetiu o ciclo daquela que acabara de ser absorvida por completo pelo grande lamaçal.        

A rosa que nascera e crescera na lama nunca soube quem de fato era e quanta beleza se encerrava em seu ser. Esquecera que não se pode parar de sonhar o que somos. O pior mal a que um ser pode ser submetido é ser levado a esquecer sua identidade, a beleza intrínseca a seu eu, a não ter, ao menos uma vez, olhado para dentro de si. Quantas rosas nascem sem a materialidade da alma. Quando nossos corações não se permitirão viver dentro de sepulturas à espera do enterro?

Nasceu na lama. Cresceu sonhando os jardins. Flores cantando e ninando os botões de rosa. Aglomerado de muitas espécies. Encanto e deslumbre, odores deliciosos. De tanto sonhar, um dia a lama deixou de ter poder sobre ela. Daquela rosa nasceram muitos botões de rosa e desses outras tantas rosas. Na história ficou a lembrança de que ali onde hoje é um lindo jardim cheio de muitas rosas existiu um lamaçal. Há rosas que vencem seus pântanos!

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