sábado, 20 de agosto de 2011

O POETA E AS LETRAS



Literalmente mumificou-se em seus pensamentos. Martinha chamou-lhe para o chá da tarde, mas em vão. Martinha, contrariando o desejo dele, pôs a bandeja com o chá na cama e ensaiou uma tosse seca para avisá-lo de sua ousadia. Completamente ramificado na cadeira do escritório. Recordemos que todas as tardes punha-se a escrever crônicas em sua escrivaninha ladeado por dois castiçais que acendia religiosamente antes da aventura do encontro com as letras. Não teve coragem de acordar as chamas; algo o questionava seriamente. Nem as letras, nem Martinha, nem a tela do computador.
O quarto era rústico. Uma cama num canto, uma escrivaninha, o computador, canetas e papéis, dois par de sapatos, um chinelo, alguns pares de meia, cuecas, duas calças, cinco camisas...Tinha muito. A vida pode ser boa com tanta coisa? Ainda que todo seu amor estivesse nas letras que lhe tinham pleno em seus mistérios, ele ainda se perguntava pela relação de posse das coisas e a felicidade.  Desligou o computador e decidiu apelar para a folha de papel e a caneta. Quem sabe assim, esse isolamento infértil lhe abandonasse. Deu algumas voltas pelo quarto. Abriu a janela. A noite chegava, enquanto o entardecer nem se despediu dele. Permaneceu procurando lá fora as letras que não vieram lhe ver. Vamos ser sinceros. Na verdade, ele buscava a si mesmo na escuridão e suas tonalidades. Disparou a rir da liberdade das letras. Não eram escravas de sua vontade. Nem mesmo prisioneiras da ciência, pois em sua cabeça havia métodos científicos próprios para domar a escrita.
Martinha entrou no quarto e acendeu as velas tentando dar uma força extra à inspiração de seu Senhor. Ele a encarou acompanhando a atitude dela. Viu que ela deixou cair uma letra sobre o papel. Mas não quis dar o braço a torcer. Não foi ao seu encontro. Ficou na janela à procura de algo que lhe sacudisse esse vazio. No fundo, ele sabia que sempre a tinta de sua caneta e o impulso de seus dedos a desfilar no teclado foi a liberdade. Nenhuma letra nos chega por imposição; nenhuma letra se rasga por pura inclinação de um desejo insano e suas algemas.
Havia terminado o dia e começado a noite. No umbral das estrelas, dos desejos e fantasias noturnas a máscara do homem caiu; o determinismo, a loucura de se achar dono das letras, a soberba de um gladiador diante de suas vítimas deixaram o espírito do poeta e, então, as demais letras vieram se juntar à letra deixada no papel por Martinha. E a lua vestiu-se de sol, as estrelas pareciam andorinhas ao entardecer, a escuridão tão clara como o ventre dos lampiões e o poeta, contemplando a nudez das letras que lhe despiam, se fez palavra, verbo conjugado, poesia...

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