sábado, 2 de abril de 2011

JANGADA





Eu a vi. No epicentro das águas. Para um lado e para o outro sob o signo das águas. Não havia pensamentos. Movimenta-se. Deixava-se ir. Dentro de si não se escutava nada, nem mesmo estalos de seu ser. Tampouco a isso se pode dá o nome de silêncio. Os únicos sons existentes som eram o toque das gotas d’água em seus poros e o sopro do vento na vela apática. Perdida sob as águas. Imóvel nas águas móveis. As gaivotas que descansavam as asas em sua proa viraram fantasmas, artefatos de suas alucinações. Eu vi a Jangada.

Sacudida por um desejo. Balançada violentamente por um sonho suicida. Gaivotas pousavam na proa. Uma após outra, amontoavam-se. Algazarra insuportável. Diluíam aquele ponto perdido em meio às águas. Como que, espantadas pelo som de uma bala de canhão, levantaram em revoada numa louca dispersão de asas, bicos e penas. Seguiu-se o silêncio das águas e do vento, o esquecimento daquele ser, uma memória apagada. Também vi gaivotas que se precipitavam em mergulhos profundos nas águas à busca de alimento e voltavam sem suas asas. Em poucos instantes, a embarcação estava abarrotada de cadáveres. Cemitério de Gaivotas.

Perdendo-se no seu querer. Não encontra forças para vencer sua solidão. Não tem ânimo para reencontrar o sentido. Olha seu exterior e não consegue captar, nem suspeita do porquê de seu ser. Está à deriva literalmente. As águas, o vento, as correntes marinhas, a beleza das gaivotas, a lua no horizonte, não trazem nenhuma Boa-Nova à sua existência. As amarras que prendiam os pedaços de madeira uma à outra iam perdendo seu poder de junção. Não havia motivo de sorrir para a lua, nem receber os carinhos noturnos das estrelas. Uma violenta tempestade aplacava seu íntimo. Entretanto, abalada por essa nuvem negra em seu coração, ela pressente que algo a impele para o profundo de si mesma, lá onde uma voz lírica canta as origens de sua história que parece acabar agora, atingida pela tempestade silenciosa.

No epicentro das águas. Sozinha. Clamando seu mestre. Não deixá-la perdida aos caprichos dos movimentos contrários do vento. Sua existência precisava ser vivida. Tudo indicava o contrário, mas no profundo de si havia o desejo de voltar-se para o pulsar de seu coração, para a tela onde se pintavam as maravilhas que sua expedição às águas desbravava. O som da madeira cansada e deprimida raspava a proa exigindo sua entrega. Mas no íntimo também a voz lírica, suave e prazerosa, acariciava a madeira que emergia. Havia esperança para a pequena embarcação desorientada. Tinha escolhas, apesar de sua condição quase clara de suicídio. Podia ser diferente sua história.

Seu mestre e guia despertou. Observou os ventos, a força das águas e alçou a vela. Toda embarcação precisa, para uma boa expedição, da presença crucial do navegante, sempre atento aos movimentos das águas e do vento. Não é favor do vento que navega, mas contra o vento. Aqui está a beleza de deixar a margem. Quem nunca deixou a margem para arriscar conhecer-se, jamais poderá saber o que é realmente nascer, viver. A jangada é feita para a aventura do mar. Avançar alguns quilômetros de sua vasta extensão; perscrutar seus mistérios. Aprender a navegar contra o vento. Só se aprende navegando.

Parada. Contemplativa. Reforçando os elos de suas madeiras. Nivelando as velas. Mirou o horizonte. Sonhou novamente com as gaivotas, o Mistério do vento contrário que guardava os mistérios de seu existir; enfim, sonhou com a maior riqueza que poderia existir dentro dos limites de sua expedição, ser Jangada para além da margem. Voltava, guiada por seu mestre, sempre vigiando os movimentos do vento, em constante discernimento. A margem novamente se aproximava de seus poros. Redescobriu-se. Tinha muito a saber de si. Entre a margem e o horizonte, estavam as tempestades, o balanço das águas, mas também, estavam as gaivotas, o som do vento, e era nesse limite da margem com o horizonte que seu mestre exercia o que sabia fazer de melhor, guiar a Jangada.

Eu a vi. Perdeu a ingenuidade diante dos conflitos e dos sonhos suicidas que faziam adormecer a figura do mestre, do navegante, do sublime sentido de existir; ou seja, ser capaz de navegar contra o vento. Ia e vinha. Da margem às águas distantes. Das águas à margem num movimento contínuo de busca de si. Não procurava coisas grandiosas, também não as rejeitava, simplesmente ela era o que tinha de ser. Eu vi a Jangada.  
 

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