segunda-feira, 19 de setembro de 2011

ENTRANHAS - II PARTE


 


2 PARTE : SILÊNCIO DESCONCERTANTE



O rapaz estava dormindo. Passou a primeira parte do dia acordado tentando manter-se em silêncio contemplativo. Fracassou. Um pedaço da tarde sentiu uma leve tentação de evadir-se daquele lugar e voltar para junto das ossadas. Mesmo nisso teve medo. Decidiu dormir. Despertou com a luz das estrelas caída em sua face sonolenta. Levantou-se e caminhou um pouco pelo espaço vazio de seu silêncio. Deixem-me descrever o lugar. Não era bem um círculo. Apenas um retângulo anômalo onde por algum motivo os ossos não alcançaram. Terra seca. Nem um raminho de capim que fosse nascia ali. Apesar de estar quase colado aos ossos, o menino sentia estar em outra dimensão; havia um mistério naquele espaço vazio. Esfregou os pés no chão. Era tão real que o fundo dos pés ficou todo marcado. Pensou que fosse ilusão e por isso sujeitou-se à experiência. Não era bem uma certeza que procurava, mas antes de tudo, uma desculpa para fugir de seu silêncio por que sempre trazem os barulhos que seu modo de viver tenta abafar cotidianamente.
O sol bateu no rosto. O estalar dos ossos de seres mortos também o fez se levantar. Deu de frente com a voz novamente. Sob os olhares atentos do rapaz, a Voz começou a abrir caminho entre os ossos que o cercavam até o limite onde não havia essa realidade. O menino contemplou a estrada feita. Por aí podes ir, falou a voz, volta ao domínio de teus medos e esperar teu retorno a este recinto. Contarei a história de um menino que recuou ante a oportunidade de defrontar-se com suas trevas. Darei eternidade ao seu crânio, não se preocupe. Não cairá no esquecimento. Sempre passam por aqui peregrinos que proponho um destino diferente ao que parece já estar traçados por suas angústias. O rapaz titubeou um pouco, mas decidiu permanecer e tentar se disciplinar quanto ao silêncio. Ele sentiu uma palmada no ar e de imediato caíram pedaços de um corpo. Espalhado pelo espaço vazio estava a ossada completa de um humano. Tu tens a oportunidade de tomar consciência de teus pedaços e, mais ainda, de integrá-los. O rapaz estava assombrado. Precisava perguntar. Suspirou fundo e desabafou: - Essas coisas sou eu? Sim, friamente respondia a Voz, és tu! Ele desmaiou. Algum tempo depois voltou a si. Continuou com suas perguntas. Que devo fazer com isso? Nada, respondeu a Voz. Concentre-se no seu silêncio e nada mais. Não adianta ter janelas ou portas se não sabes onde e quando o sol baterá mais forte; ou de onde melhor se contemplam estrelas; tens que dá nome a teus medos; precisas ir aonde tu mesmo trancaste a porta e fingiste ter perdido a chave. Não estás obrigado a abrir, mas ao menos, tenha consciência de que ainda guardas a chave em algum lugar de teu interior. O rapaz percebeu que só dependia de sua vontade agora. Foi para uma das extremidades do local e se pôs a praticar a arte do silêncio.
Estava algum tempo já em silêncio. Seu espírito vagava pelas águas inquietas de seu ser. Parou diante de um redemoinho que devia ser o causador de toda a agitação. Não atreveu aproximar-se. Também não fugiu. Estava no epicentro de sua dor. Lá fora, seu corpo doía; era atingido pela tensão que internamente se passava. O rapaz ficou naquela distância e observava o redemoinho. Seus olhos se abriram e viu algumas cenas, meio embasadas, que tinha decidido nunca mais revisitar. A gênese de todos os seus medos. Começou a odiar o redemoinho, a desferir palavras agressivas e obscenas em sua direção. Seu peito explodia de raiva contra a força do redemoinho. Os ossos que lhe rodeavam tremiam e se mexiam, aproximando-se um do outro. A respiração do rapaz estava ofegante. Para sua surpresa, chegou ao seu nariz um perfume trazido nos braços de uma brisa suave. Deixou-se embeber por ele, invadir toda a região de seu corpo tenso e quebrantado. Procurou a origem de tão inebriante perfume e viu que ele nascia justamente do redemoinho. Misturavam-se e se alternavam sentimentos de raiva e encanto. Ele tomou consciência do que estava acontecendo e balbuciou bem suave, porém com a força de um tufão: Onde mais temo é onde está minha nascente!
Ao despertar do seu silêncio, o rapaz espantou-se ao ver alguém parado diante de si estendendo-lhe uma chave. Quem é você? Inquiriu. Eu sou aqueles ossos que estavam no chão. Tome, esta chave lhe pertence. O rapaz pegou a chave e a pessoa sumiu. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Está me cativando essas entranhas...
tem muito de mim aí envolvido.
Me vi em alguns trechos de seu texto.
Tem mais?

Rosilvado - Fortaleza
Advogado

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