quarta-feira, 10 de agosto de 2011

MEUSQUELETO






Assim fala o Senhor Deus: ‘Espírito, vem dos quatro ventos, sopra sobre estes mortos, para que eles recuperem a vida... imediatamente, o espírito penetrou neles.
Ez 37


A primeira e única palavra que escutei tinha sido olá. Mas um esqueleto não poderia, teoricamente, comunicar-se, ou mais precisamente, usar a voz como linguagem. Eu poderia fugir àquilo que eu considerava como fantasma, porém algo me prendia naquele ser que me saudava. Fazia me lembrar alguém, como se ali fosse um reencontro entre dois grandes amigos. Extremamente alucinante como o absurdo lá no nosso íntimo não nos parece tão horrendo, a não ser pelo uso da sã consciência. Não era noite, nem eu estava num cemitério. Tomava meu cafezinho numa praça ao entardecer. O banco ficava embaixo de uma árvore que morria, sem folhas e nem brotos, para poder renascer; esperava seu recomeço. Eu sentia as últimas folhas caírem e deslizando por sobre a pele. Fechei os olhos como se estivesse num ritual de purificação. Nesse cenário, como num suspiro senti que não estava sozinho.  
- Ofereça-me um pouco de seu café, pois também aprecio; serve como cálcio para meus ossos. – disse-me o esqueleto.
O café escorreu por seus ossos dando-lhe uma cor negra. Novamente veio a impressão de que não era desconhecida aquela sensação que eu via em seus contornos esqueléticos; parecia minha sensação ali desvelada. Deixei que ele degustasse o café em seu silêncio fúnebre sem o interferir. Após alguns instantes em que ele esteve embebido de seu êxtase, tomei a palavra:
- Você não me é estranho! Creio que temos alguma relação presente, passada, não sei... O que sei é que não corri, nem desmaiei ou tive os olhos tomados pelo medo; permaneci na intuição de que há alguma ligação entre nós, como se existisse um imã nos atraindo.
Ele permaneceu calado. Fiquei aguardando alguma reação dele; por precaução, tomei meu café, pois não gostaria de dividi-lo novamente. Remexeu-se no banco e suspendeu o dedo anular à altura de seu ombro; levou até a extremidade de minha orelha e desceu pelo queixo até a extremidade da outra orelha e fez o mesmo movimento em si. Só então, despertei e dei um salto amedrontado com o corpo tremendo; meu Deus, ali era eu, esquelético, sem vida, sem expressão, o eu simples sem aquele traço característico de meu eu complexo. Não arrisquei me aproximar com medo de que ele fosse meu eu verdadeiro e esse ser amedrontado fosse a ilusão que eu precisava me livrar. Ele muito paciente – sim, porque não existem esqueletos impacientes, a não ser em fábulas e filmes de terror – girou a caveira para o meu lado e me pediu permissão para falar de meus ossos, em outras palavras, de si mesmo; também me tranqüilizou que o único ser verdadeiro e tocável naquele ambiente era eu, medroso e trêmulo.
- Como você saiu de minhas carnes? Você é apenas isso que agora vejo?
- Sou apenas isso que você ver.
- Ossos?
- Não. Asas, penas... Alô! É claro que sou só esses ossos! Diga-me você como anda gastando suas carnes e, acima de tudo, que fez com o sopro que mantinha as carnes e este esqueleto?
- É verdade! Cadê o espírito?! E se era ele quem também mantinha o esqueleto, porque ainda vives, quer dizer, tem sinais de vida?
- Alôoooooooooooooooooooooooooooo! Esqueceu que os ossos não são como carnes?  Já viu alguém encontrar um dinossauro com um pedaço de carne grudada no osso? Tudo bem que o espírito já não vive em mim. Aqui são resquícios de uma brisa que guardei em minhas entranhas quando caí na conta que logo seu espírito o abandonaria.
- Diga-me, meu esqueleto, como reverter essa situação em que me encontro? Como posso ter de volta você e principalmente meu espírito? Há ainda possibilidade disso acontecer?
- Bem, enquanto eu estiver com estoque de brisa em minhas entranhas há uma possibilidade; esse é o motivo de minha tentativa em promover este encontro, já que logo descerei camadas de terra abaixo da superfície.
- Tudo bem! Tudo bem! Vamos lá! Nada de pressa...Diga-me pausadamente sem gaguejar ou ranger as mandíbulas para que eu não perca nenhuma dica. – o jovem falava gaguejando.
- Então, pequeno monte de carnes, você deve ir em busca de seu espírito.
- O quê? Peraí! Agora vi... Você não sabe onde está meu, quer dizer, nosso espírito? Perdi meu espírito e não fui avisado de que subtraíram como um ladrão na madrugada enquanto eu dormia?
- Não. Ele foi tirado com você totalmente desperto. Quando alguém colhe frutas de árvore numa estação e esquece de regá-la novamente para a próxima safra, o que acontece inicialmente?
- Ela deixa de produzir novos frutos.
- Certíssimo. Eis sua situação atual. E se novamente não regá-la, o que sucederá?
- Ela secará e... – Ele foi tomado novamente de medo e pavor.
- Continue... Estou amando sua inteligência. – ironizava o esqueleto – Vamos ao ponto que nos interessa. Você reconhece que ainda há seiva na árvore que rendia bons frutos à sua vida. Volte às ruas que circundam essa praça, ou seja, retorne ao acontecer de sua vida e cuide mais da árvore enquanto não secou de vez. O espírito não deve estar muito distante. Dê-se a chance de recomeçar e logo logo estaremos juntos tomando um cafezinho.
- Mas há pedras enormes que não deixam as raízes irem mais longe impedindo o desenvolvimento do que sou. Ai, ai, o que faço... – ele suspirou num ato de desespero e desejo de suicídio.
O esqueleto calou-se. Levantou-se e caminhou para trás do banco onde cresciam flores formosas. Lançou-se todo, sem jeito, mas confiante no meio das flores, mesclando-se, moldando-se ao ser das flores. O rapaz entendeu aquele gesto simbólico e profundo. Chorou como nunca havia serenado antes em sua alma lágrimas de coragem e perdão. Decidiu tomar suas carnes em estado de decomposição e pisadas pelas enormes pedras e lançar-se todo, sem reservas, no meio dos frutos que ainda viviam em seus sonhos, mesclando-se, moldando-se à fragrância e ao sabor dos frutos que produzem o espírito.  

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